Friday, March 24, 2006

Eu e ele.

"Ô tia!
Me dá um real aí pra comprá um negócio de comê ali?
Tem dois dia que eu não como nada."
(com uma garrafa cheia de cola escondida debaixo da blusa)
Chovia muito, as pessoas se espremiam debaixo do único ponto de ônibus naquela rua. Ele, bermuda rasgada na bunda, blusa suja e apenas um pé de chinelo. 23 anos, mais ou menos. Alto, cabelo raspado, sem dentes. Expressão forte. Estranho. Vagava sem medo de ser atingido pela chuva. Na verdade, era incrivelente capaz de desviar dos pingos, maladragem da vida na rua.
E, em meio àquela confusão de gente, ônibus, água, sombrinhas e cansaço de final do dia, ele parava com a mão estendida e dizia o texto que soava inutilmente aos ouvidos alheios. Uns se afastavam em um silêncio trêmulo, outros por medo de uma reação mais brusca diante do "Não!" sacavam moedinhas dos bolsos.
Eu seguia seus passos com os olhos esperando a minha vez de ouvir o texto incansável e molhado. Enquanto isso, pensava em qual seria a minha reação. "Não! Não acho bacana dar dinheiro, talvez possa comprar uma prato de comida na lanchonete ali da frente e alimentar o seu texto faminto pelas próximas horas." Mas ele não vinha....
Me olhava com uma mistura estranha de pudor, medo, admiração, não sabia como olhar, na verdade. Desviava de mim, mais do que dos pingos de chuva amarrotando minhas possibilidades de ir até ele. Não, ele não vinha cuspir seu texto decorado em mim, mas por que não? Eu queria sim ajudar com mais do que simples e simbólicas moedinhas. Não tinha medo, era como se quisesse muito me aproximar dele. E ele só se esvaía de mim.
Foi então que, depois de mais de dez minutos de observação, de três ou quatro ônibus perdidos, eu consegui ter uma idéia do que se passava. Vergonha. E eu senti, mais uma vez, um soco no estômago. Os olhos que assustavam pela amargura agora eu via com uma inocência nunca imaginada. Percebi que a minha presença ali o incomodava mais e mais a cada segundo.
Atrás da bermuda rasgada, da cara de mau, da garrafa de cola, tinha um homem como todo e qualquer outro. Com desejos e sentimentos. Tinha mais, tinha fome e tinha respeito também. Eu me incomodei por incomodar. Resolvi pegar o primeiro ônibus e deixá-lo a vontade, ainda que com fome.
Foi uma viagem difícil de volta pra casa. Presa na surpresa de me deparar com um olhar tão cheio de pudor onde nunca pensei encontrar. Não sei, foi estranho pra mim não saber que nem sempre as pessoas te vêem como você pensa que é visto. E mais, perceber que meus olhos também precisam se livrar do vício de ver o prédio inteiro, quando o que relamente importa é só uma janela.

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