Wednesday, December 14, 2005

Doido ele, doída eu.

Voltando de mais uma aula semanal de circo, ali na Franciso Matarazzo, ao lado do viaduto Pompéia, um cara paralisou meus passos por uns bons dez minutos da minha hora tão ausente desses mesmos.

Seria um louco qualquer, desses que a gente vê aos montes vagando pelas ruas das grandes cidades, não fosse pelo sentimento que seus gestos, quase uma performance, causaram em mim. Era velho, mais de 60 tenho certeza que já tinha. Usava barba, creio eu não por opção estética, quase nenhuma roupa e uma expressão ímpar de alegria.

Acho que foi esse sorriso sem dente algum que me trouxe à tona uma pergunta rasgando a razão: o que será que ele estaria pensando? O que pensam as pessoas que rotulamos “doidas” por esbarrarem nas arestas do nosso tão quadrado padrão social de normalidade? Se estivesse no programa do Sílvio Santos com um fone no ouvido, presa em uma cabine sem som, trocaria um milhão de reais por dez minutos daqueles pensamentos. Pode parecer ridículo, e eu sei que é, mas trocaria mesmo assim.

Foi então que comecei a perceber minha imaginação se rendendo à inúmeras possibilidades sobre aquele mundo, tipo um certo desenho animado chamado “O Mundo de Bob”, sabe? Não sei o que ele pensava enquanto articulava os braços de um lado para o outro, enquanto desenhava com as pernas uma meia lua no chão molhado e ria, ria muito. Sei que ele não pensava na cassação do José Dirceu e suas consequências político-nacionais, não lembrava que amanhã é dia mundial da luta contra a Aids, nem se quer sabia que dezenas de iraquianos morriam na suja e hipócrita tentativa dos EUA de impor sua soberania sob os quatro cantos do mundo.

Certamente ele não sabia que hoje é dia 01 de dezembro de 2005, que o ano tem 365 dias, que as horas passam a cada 60 minutos, quantos anos de vida ele teria e muito menos quantos mais queria ter. Não fazia idéia dos desastres naturais que a Terra tem visto com frequência assustadora, do desrespeito absurdo com o qual os homens têm se tratado, apesar de ser filho legítimo do casamento entre a desigualdade e o descaso social.

Aquele cara também não conhecia as lindas praias do litoral baiano, talvez nunca tivesse sentido cheiro de perfume ou participado de uma roda de samba. Será que já tinha se deitado em cama quente num dia de chuva? Comido estrogonofe com batata frita? Não sei, possibilidades muito remotas, respostas que talvez nem ele pudesse me dar.

E no final da minha análise, da minha furtiva crise de curiosidade, cheguei à conclusão de que o mundo desse cara, a cabeça dele, talvez fosse muito mais esperta que a minha. Tive essa certeza quando me caiu a ficha de que ele nunca seria tolo a ponto de perder o traço tão alegre da meia lua desenhada com as pernas no chão molhado para pensar no que aquela moça, que atravessava a rua correndo atrás dos seus minutos, perto do viaduto Pompéia, tinha dentro da sua cabeça “normal”. Não! Definitivamente ele não me parecia tão insano assim.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Tuas palavras são quase tão lindas quanto o arco-íris que paira dentro de ti. Lendo-as me senti criança, com o gosto de pé-de-moleque na boca, dançando quadrilha com a mais linda noiva da festa.
Obrigado por me presentear com o mais lúdico dos presentes. Mesmo que tenha sido sem querer.
Te adoro!

Ruax

5:29 pm  
Anonymous Anonymous said...

Luxo é apreciar o conforto das pequenas coisas, cultivar as pessoas de boa vontade. Lugares banhados de luz natural, água fresca, sombra acolhedora, aquele sofá que abraça a gente e faz o papo fluir sem que se queira olhar o relógio.
Esse blog é assim... a sua cara!!!
Tem cara de estrelas no céu... lua na janela... rede na varanda e muito clima de amor...
bjs
Tia Kátia

11:57 am  

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